domingo, 3 de agosto de 2025

Direito Penal: Uma Ciência Humanística

Há tempos venho refletindo sobre a posição peculiar do Direito Penal no universo jurídico. Depois de anos transitando entre diferentes ramos do direito, uma convicção se fortalece: o Direito Penal deveria ter tratamento diferenciado nos cursos jurídicos. Não por elitismo acadêmico, mas por sua própria natureza e pelas consequências irreversíveis de sua aplicação.

Por sua universalidade, o Direito Penal exige muito de quem dele se aproxima. Não se trata apenas de conhecer normas e procedimentos. É preciso ser conceitual, metódico, preciso. Cada artigo do Código Penal deve ser lido como quem lê um versículo bíblico, porque ali o VERBO ― que é a alma do tipo, seu núcleo ― dá o tom de tudo.

Esta precisão difere fundamentalmente do Direito Civil, onde a impessoalidade predomina e há maior margem para interpretações extensivas. Em Direito Penal, cada palavra importa. Nele, vai-se da objetividade cristalina do tipo à subjetividade profunda do dolo, sem contar as sutilezas da culpa. É preciso navegar por pelo menos duzentos anos de teorias do delito, cada qual mais filosófica que a outra, compreendendo as implicações antropológicas e os aportes da Criminologia.

Estudar Direito Penal é mergulhar simultaneamente na filosofia, indo de Beccaria até Jakobs, porque cada escola penal reflete uma visão de mundo sobre o homem, a sociedade e o Estado. É preciso recorrer à Psicologia, para compreender os meandros da vontade, da consciência e da motivação humana. A Sociologia, pelo crivo da Criminologia, ajuda-nos a entender o crime, o criminoso e a sociedade que o produz. E a História, é claro. Porque sem ela não se compreende o presente e as políticas criminais que ele comporta. Enfim. Direito Penal não prescinde da Antropologia, porque se trará também de decifrar os comportamentos humanos ­― demais humanos ― em suas manifestações mais complexas, às vezes heroicas, não raro brutais.

Diferentemente de outros ramos do direito, onde o erro pode significar prejuízo patrimonial ou inconveniente processual, no Direito Penal o erro pode custar a liberdade. Esta responsabilidade ética deveria permear toda a formação do penalista, desde os bancos acadêmicos até a prática forense.

Por todas essas razões, creio que todo curso de Direito deveria separar o Direito Penal, conferindo-lhe tratamento especial. Não se trata de hierarquizar saberes, mas de reconhecer especificidades. Assim como a Medicina tem suas especializações mais exigentes, o Direito deveria reconhecer que o Penal requer preparação diferenciada. Esta separação permitiria uma formação histórica, necessária para compreender a evolução das ideias penais desde o Iluminismo; e uma formação filosófica, que permitisse o estudo das teorias do delito como ferramentas de trabalho.

O custo do não aprofundamento é alto, porque daí advêm políticas criminais equivocadas, a aplicação irrefletida de tipos penais, a incompreensão das teorias do delito. E tudo isso tem sérias consequências. Quando vemos a expansão desmedida do Direito Penal para áreas antes reguladas apenas pelo direito civil, quando observamos a criminalização de condutas sem a devida reflexão sobre suas implicações, quando presenciamos a aplicação mecânica de normas sem compreensão de sua fundamentação teórica, percebemos o preço da negligência com que às vezes se trata esta ciência.

O Direito Penal não é apenas uma disciplina jurídica. É uma vocação. Vocação para quem não se intimida com a complexidade, para quem aceita o desafio de trabalhar com a precisão de um relojoeiro e a sensibilidade de um humanista.