Ratio et Auctoritas traz hoje Gabriel Tarde, cuja obra As Transformações do Direito (1893) ― a tradução aqui disponibilizada baseou-se na 7ª edição, Paris, Alcan, 1912 ― nos apresenta o Direito um fenômeno vivo, moldado por invenções e imitações humanas. Traduzi este livro com paixão, há mais de vinte anos, descobrindo Tarde como um pensador profundo, que impactou profundamente toda a minha visão do Direito.
Gabriel Tarde (1843-1904), nascido em Sarlat, França, foi juiz e sociólogo. Em As Transformações do Direito, ele argumenta que o Direito evolui por interações individuais, rejeitando o determinismo. Sua frase, “Existir é diferir,” reflete uma visão humanista, onde cada pessoa molda normas com sua “originalidade irredutível.” Influenciado por Maine de Biran, Tarde oferece uma leitura única para juristas. No século XIX, o positivismo e o biologismo reinavam, com teorias como a de Lombroso, que Tarde desafiou. Publicada em 1893, As Transformações do Direito ganhou relevância no século XX e, mesmo hoje, dialoga com temas atuais.
Tarde foi um jurista polêmico. Ele criticou o “criminoso nato” de Lombroso, que via o crime como traço biológico. Em A Criminalidade Comparada, ironizou: “Lombroso foi como café: excitou a todos, mas não alimentou ninguém.” Para Tarde, o crime é social, fruto de imitações, reforçando o Direito como interação humana. Contra Émile Durkheim, que via o Direito como produto de uma consciência coletiva autônoma, Tarde defendeu que normas nascem de interações entre indivíduos. Enquanto Durkheim tratava fatos sociais como “coisas” externas, Tarde apostava na imitação: “Nossas semelhanças não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença essencial.” Essa visão individualista ilumina debates jurídicos sobre proporcionalidade e autonomia.
Gabriel Tarde surpreende pela abordagem sociológica do Direito, desafiando conceitos tradicionais com um estilo literário que é só dele. Traduzi-lo exigiu pesquisa ampla devido à complexidade do texto, marcado por figuras de linguagem, inversões e perguntas que instigam dúvidas e buscam respostas inovadoras. Tarde desconstrói ideias evolucionistas, antropológicas e romanistas, questionando noções como evolução, contrato, penas e Direito Natural, usando a imitação como fenômeno social central, distinto da ondulação (física) e da hereditariedade (biológica). Ele critica o exagero do atavismo e da hereditariedade, propondo que o Direito nasce de interações individuais, não de determinismos. Sua visão humanista destaca a “originalidade irredutível” de cada pessoa, visível em figuras históricas que expressam uma beleza moral universal, como Sócrates, Buda ou Cristo. Tarde combina ironia e sensibilidade, rejeitando a objetividade estéril de juristas contemporâneos e apelando a leitores dispostos a repensar conceitos.
Na obra, Tarde analisa o Direito sob a lente da imitação, demonstrando que o Processo evolui por registros que começaram com o escrivão iconográfico. Já o regime de pessoas varia entre sociedades, conforme fossem poligâmicas, patriarcais etc. O regime de bens surge da apropriação pelo inventor, propagada pela imitação. Na parte voltada às obrigações, ele nos explica como os contratos nascem do respeito à invenção, generalizado pela imitação. Tarde surpreende ao criticar a concepção clássica de contratos, propondo que novas invenções, como títulos ao portador, desafiam ortodoxias. Sua análise sociológica do Direito como evolução descontínua inspira reflexões sobre razoabilidade e inovação jurídica. Sua posição acerca do Direito Natural como construção convencional e não natural surpreende e apaixona. Ao final, ele compara o Direito à Linguística, destacando analogias.
A ousadia em pensar o Direito como invenção imitável nos convida a refletir sobre o que há de novo e vivo na experiência jurídica. Que sua escrita — tão inquieta quanto visionária — nos inspire a fugir do dogmatismo e a cultivar, como ele, a beleza das ideias.
Tradução disponível: As Transformações do Direito