quinta-feira, 12 de junho de 2025

A Criminalidade Comparada de Gabriel Tarde

Divergindo das propostas consagradas no tempo em que viveu, Gabriel Tarde deu voz ativa a uma revisão de valores e métodos. Entendendo o Direito como um ramo da Sociologia, Tarde situa o Direito Criminal como tendo sua origem na solidariedade do grupo social que deveria resistir a eventuais atentados de ordem interna ou externa. A simpatia, que se expande através da imitação, seria o sentimento comum que faltaria ao criminoso, um elemento sem similitude social. Transgredindo a lei, o criminoso perderia essa identidade social. Com isso, o crime, para Tarde, deixa de ter uma significação absoluta e passa a ter um caráter relativo à sociedade e à época.

 

Inúmeros exemplos históricos citados por Tarde são mais que convincentes. Na Antiguidade grega, o crime mais abominável era o de deixar os pais sem sepultura. Na Idade Média, o crime imperdoável era o de sacrilégio, em seguida, a bestialidade (zoofilia, relações sexuais com animais) e a sodomia; depois, muito mais abaixo na hierarquia dos delitos que poderiam ser perdoados, vinham o assassinato e o roubo.

 

Dos dez crimes que as leis hebraicas, segundo Thonissen, puniam com a lapidação (a saber, a idolatria, a excitação à idolatria, a consagração a Moloch, a magia, a evocação de espíritos a desobediência obstinada aos pais, a profanação do sábado, a blasfêmia, a violação da noiva de outrem, a má conduta da jovem atestada pela ausência de sinais da virgindade no momento de seu casamento) existem aí nove que deixaram de ser delitos mesmo em nossas sociedades européias, e o décimo, a saber, a violação da noiva de outrem, permanece crime, mas em outro sentido; porque é a violência feita a uma mulher como tal que é agora punida, e não o ultrage feito àquele de quem a noiva é violada. Outros crimes eram punidos pelo fogo, o gládio ou o estrangulamento: falsa profecia, “profecia mesmo verdadeira feita em nome de deuses estrangeiros”, adultério “da mulher”, golpes “ou maldições” aos ascendentes, roubo em prejuízo de um israelita, homicídio voluntário, bestialidade, sodomia, incesto. Vê-se ainda que muitos desses crimes não são mais mesmo contravenções e que a gravidade relativa de outros mudou muito. No Egito, o maior dos crimes era matar um gato. Quer dizer que o povo hebreu, assim como todos os povos antigos, cometia um absurdo erro em qualificando como criminosos atos julgados hoje inofensivos? Não, porque eles não eram inofensivos, longe disso, para sua organização social, da qual eles minavam os fundamentos[1].

 

Esse tipo de ressalva de ordem temporal, social e histórica falta em Lombroso, que partiu do pressuposto apriorístico de que tudo aquilo que, em seu tempo, era sentido, percebido e considerado como “crime” deveria sê-lo também desde sempre, razão por que, ao deparar-se com sociedades em meio às quais certas práticas eram permitidas e mesmo estimuladas, concluía que estas deveriam ser consideradas anormais ou selvagens, enfim, simplesmente opostas a valores culturais identificados com uma cultura eminentemente europeia e ocidental.

 

Para Tarde, porém, a criminalidade é também um fenômeno relacionado à opinião do momento e à legislação, sempre mutável, do meio ambiente. A seus olhos, o argumento ideológico não escapa. Necessariamente, cumpria condenar o ponto de vista de César Lombroso, segundo o qual existiriam criminosos natos. Para Tarde, ninguém nasce para tornar-se criminoso. Ele reconhece, porém, a existência de tendências naturais, influências de ordem social que poderiam levar à criminalidade individual e mesmo à criminalidade coletiva.

 

Todavia, mesmo admitindo tendências individuais e naturais, Tarde não as insere no contexto causal absoluto do crime. Não as exclui, contudo, mas relativiza-as buscando determinantes sociais e que agiriam simultaneamente por sugestão e consequente imitação. Sugestionado, o indivíduo portador dessas tendências, conceberia a ideia do crime que um meio social conturbado favoreceria. Imitado, o crime pode propagar-se à sociedade inteira, propagação que acontece de cima para baixo, ou seja, das classes mais elevadas para as mais baixas. Como exemplo, Tarde cita a embriaguez que foi, primeiramente, um luxo real depois tornado aristocrático, antes de tornar-se definitivamente um vício popular.  O envenenamento, por sua vez, um discreto crime político, acabou passional.  Estupros e roubos eram práticas militares comuns que só posteriormente passaram a ser praticadas pelos civis.

 

Ainda que o capítulo dedicado à estatística não pareça interessante ao leitor da atualidade, os métodos de análise através dos quais Tarde nos ensina a traduzir a realidade implícita nos dados coletados são profundamente significativos. Ele nos aponta, por exemplo, um período no qual o crime aparentemente diminuiu pela metade, a saber, de 1826 a 1886; os delitos, por sua vez, triplicaram. Não se tratou, todavia, do qualquer reflexo de ordem social, mas apenas o resultado de medidas correcionais que destinaram os crimes considerados menos graves a juízos especiais, frustrando-os à competência do Tribunal do Júri. As estatísticas, pois, podem prestar-se a manipulações, sempre que não soubermos exatamente como analisá-las.

 

O grau de convicção judicial, por sua vez, é avaliado segundo épocas e locais, num apanhado histórico do testemunho e da confissão, dos ordálios, especialmente, do juramento, destacando como se formava a certeza da culpa deste a Antiguidade até o final do século XIX, destacando que esta convicção daquele que condena é raramente racional, pois os juízes seriam influenciados, seja pelos discursos da defesa, seja pelo ponto de vista de seus colegas magistrados. Em sua Filosofia Penal ele reforça as mesmas convicções:

 

Procurar o autor de um crime e demonstrar sua culpabilidade: este problema, — para nós de um interesse teórico bastante secundário apesar de tudo, — foi a ginástica mais interessante da lógica indutiva em sua aurora. Antes de todo problema científico, nada poderia apaixonar mais a curiosidade e estimular a imaginação do que esse enigma a resolver. Era ainda, como no estado selvagem anterior, a caça ao homem, mas sob uma forma melhor e mais inteligente. Mais tarde, o interesse desta procura diminuiu, mas jamais cessou de permanecer muito vivo. Não é, pois, surpreendente que o homem tenha, em todos os tempos, — sobretudo nos mais remotos tempos, — chamado em seu socorro, para o esclarecimento desse mistério, todos os recursos reais ou imaginários, positivos ou místicos que estavam ao seu alcance. Sem dúvida, sempre se ouviram testemunhas, interrogaram-se indivíduos suspeitos, constatou-se o estado dos lugares, recolheram-se indícios de toda sorte: sempre se viu a confissão do acusado como uma espetacular demonstração de sua falta. Mas, além disso, toda época teve seu gênero de prova de predileção, seu método característico. É preciso evitar crer que a “rainha das provas” tenha sido sempre a confissão. Acredita-se que a decisão de um oráculo acusador nos tempos heróicos da Grécia, ou a prova mal sofrida da água fervente ou do ferro em brasa, nos dias mais grosseiros da Idade Media, não tivessem tanta força probante quanto a própria confissão? Cada época reflete visivelmente, no processo criminal que a caracteriza, a fé fundamental que a anima, ou seja, sua crença mais universal e mais indiscutível, de sorte que a série de transformações legislativas e judiciárias, nesse ponto, correspondem às próprias transformações do pensamento humano.

Mística no início, alucinada, embriagada de ilusões e de orgulho, ela povoa o universo inteiro de deuses, mas deuses unicamente ocupados e preocupados com o homem. Ela vive em uma natureza na qual todos os seres vivos ou inanimados na aparência têm olhos para ver o homem, uma linguagem misteriosa para entreter-se entre o homem e eles, e mesmo para fazer-se entender por ele às vezes, para revelar-lhe o significado dos enigmas que o atormentam, a causa de seus crimes ou o segredo de seu amanhã. O mesmo espírito, pois, que permitiu a divinação por augúrios ou aos feiticeiros se difundirem e consolidarem durante longos séculos, deveu favorecer à difusão e ao estabelecimento da instrução criminal pelos ordálios. Sendo dado que as ações boas ou más, passadas, presentes ou futuras de cada um de nós são a grande preocupação da divindade ambiente e constituem toda sua onisciência relativa, é tão natural questionar simbolicamente sobre a culpabilidade ou inocência de um acusado, quanto sobre a vitória ou a derrota de um general às vésperas de entregar-se a uma batalha. Consulta-se então o ferro em brasa, a água fervente, as cartas ou os dados, a sorte cega das armas, os sonhos, tantas revelações divinas, assim como nós, hoje, consultamos nossos peritos médico-legais, ou, de preferência, como nós os consultaríamos no amanhã, quando a ciência fixada e dogmatizada se tornasse talvez um ídolo por sua vez e produziria oráculos investidos unanimemente de uma infalibilidade autoritária. Os ordálios são, de qualquer sorte, as perícias médico-legais do passado. Elas correspondem à fase mitológica do espírito humano, assim como nossas perícias começam a corresponder à sua fase científica que apenas se inicia. Mas, entre essas duas superstições, das quais uma era pueril e quimérica, da qual a outra será — eu espero — séria e, em larga medida, mais profunda depois, uma e outra subjugaram a humanidade e imprimiram sua marca às instituições penais[2].

 

Gabriel Tarde contrariou todas as correntes de pensamento que prevaleceram ao tempo em que viveu. Não apenas em Direito Criminal, como também em outras áreas abrangidas pelo Direito. Mais de cento e vinte anos se passaram desde a sua morte, em 1904, e seu pensamento só agora nos aparece sob contornos que o tempo soube evidenciar. As ideias positivas foram abandonadas afinal, o sonho socialista não mais convence inteiramente. Abandonou-se também a ideia de uma misteriosa lógica interna da História, determinista do progresso. A ciência debruça-se sobre as próprias imprecisões e presta-se passivamente ao exame de uma patrulha que denuncia sua instrumentalidade ideológica.

 

No século em que viveu, Gabriel Tarde soube melhor que nenhum outro mostrar-se completamente céptico diante das ideias de progresso. Independente, ele criticou os mais respeitados pensadores de seu tempo, negando-se a prestar homenagens e tributo aos intocáveis ícones culturais à sombra dos quais viveu. Em necrológico, Henri Mazel dele afirmou que não gostava muito de Comte, que criticou Darwin, desconfiou de Spencer, não seguiu Renan e permaneceu indiferente ao grande Taine. Tarde ora é o poeta, ora é sociólogo, ora é o jurista, ora é o filósofo que fala e que perscruta a história e reclama da ciência e de seus representantes um compromisso verdadeiro.

 

 A CRIMINALIDADE COMPARADA

 

 

[1] TARDE, Gabriel. La Criminalité Comparée, Paris: Alcan, 1910, pág. 27-8.

 

[2] TARDE, Gabriel. Philosophie Pénale. Paris: A. Maloine, 1903, pág. 432-4.