segunda-feira, 27 de outubro de 2025

STJ: teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica não alcança multa por litigância de má-fé


A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica não autoriza que o sócio seja compelido a pagar multa por litigância de má-fé imposta à sociedade antes de sua inclusão no processo. O caso teve origem em uma ação de consumo. A empresa foi condenada e, na fase de cumprimento de sentença, houve desconsideração da personalidade jurídica, com inclusão de uma sócia no polo passivo. O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que essa sócia deveria arcar também com a multa por má-fé aplicada à empresa, mas o STJ reformou a decisão.

Segundo o voto prevalente do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a teoria menor, prevista no artigo 28, §5º, do Código de Defesa do Consumidor, dispensa a prova de fraude ou abuso, bastando a demonstração da insolvência do fornecedor ou do impedimento à reparação do dano. Sua aplicação, contudo, exige autorização legal e restringe-se a ramos específicos, como o direito do consumidor, ambiental e antitruste. O ministro destacou que a litigância de má-fé não integra a atividade empresarial, pois decorre de conduta processual contrária à boa-fé, e a respectiva multa tem natureza punitiva e administrativa, distinta das obrigações consumeristas.

Assim, o fato de a sanção ser cobrada nos mesmos autos não transforma a conduta processual em risco da atividade empresarial, inviabilizando sua transferência ao sócio pela via da teoria menor. Para responsabilizar o sócio por multa de má-fé seria necessário demonstrar os requisitos da teoria maior — fraude, abuso ou confusão patrimonial — o que não ocorreu no caso concreto.

O precedente foi firmado no Recurso Especial nº 2.180.289/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi e voto vencedor do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27 de outubro de 2025.

Para quem não lembra...

Diferença entre as Teorias Maior e Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Aspecto

Teoria Maior

Teoria Menor

Fundamento

Abuso da personalidade jurídica: desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Insolvência ou dificuldade de reparação do dano, sem necessidade de fraude.

Natureza

Punitiva – exige demonstração de má conduta societária.

Instrumental – visa proteger a parte vulnerável (ex.: consumidor).

Prova exigida

É preciso provar fraude, abuso de direito ou desvio de finalidade.

Basta comprovar que a personalidade jurídica impede o ressarcimento do dano.

Base legal

Art. 50 do Código Civil.

Art. 28, §5º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Âmbito de aplicação

Geral (civil, empresarial, trabalhista, etc.).

Restrita a ramos específicos: consumo, ambiental e antitruste.

Efeito

Responsabiliza o sócio que agiu de má-fé.

Permite atingir o patrimônio do sócio apenas para garantir a efetividade da reparação.

Em resumo:

  • A teoria maior é punitiva — exige prova de abuso.
  • A teoria menor é protetiva — basta a insolvência da empresa e a frustração do crédito do consumidor.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica não alcança multa por litigância de má-fé. Brasília, DF: STJ, 27 out. 2025. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 27 out. 2025.

 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Recuperação de Crédito: quando o devedor é microempresário

O agravo de instrumento nº 53320134420248217000, julgado pela Vigésima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 12/11/2024 é um precedente de relevância prática e teórica no âmbito do direito empresarial e processual civil. Trata-se da possibilidade de redirecionamento da execução para o empresário individual sem a necessidade de instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O tema remete à efetividade da execução no contexto das microempresas individuais (MEI) e empresários individuais, cuja realidade patrimonial é distinta das sociedades empresárias tradicionais.

No caso concreto, a empresa moveu execução de título extrajudicial contra uma ME individual. A agravante sustentou a necessidade de incidente de desconsideração da personalidade jurídica para redirecionamento da execução ao empresário, alegando que deveria ser garantido o contraditório e a ampla defesa, bem como demonstrada a ocorrência de desvio de finalidade, abuso de direito, conluio ou fraude, nos termos dos artigos 134 e 795 do Código de Processo Civil. O TJRS, em julgamento monocrático, fundamentou sua decisão em precedentes consolidados do Superior Tribunal de Justiça, especialmente o REsp 1.899.342/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 26/4/2022, DJe 29/4/2022, ressaltando que:

“O empresário individual e o microempreendedor individual são pessoas físicas que exercem atividade empresária em nome próprio, respondendo com seu patrimônio pessoal pelos riscos do negócio, não sendo possível distinguir entre a personalidade da pessoa natural e da empresa.”

Dessa forma, por se tratar de empresário individual, não existe separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e da pessoa física, como ocorre nas sociedades empresárias. O TJRS, portanto, entendeu ser desnecessário instaurar incidente de desconsideração da personalidade jurídica, admitindo o redirecionamento da execução diretamente ao empresário individual. A decisão do TJRS encontra amparo em normas processuais e na jurisprudência consolidada.

O empresário individual, nos termos do art. 966 do Código Civil, exerce a atividade empresarial em nome próprio. Seu patrimônio pessoal responde pelos débitos da atividade empresarial, salvo proteção legal específica, o que o diferencia o empresário individual da sociedade empresária. O art. 782, §3º, CPC, por sua vez, permite o redirecionamento da execução ao devedor titular do patrimônio responsável pelos débitos.

Do ponto de vista doutrinário, a decisão reflete a natureza híbrida do empresário individual, que é ao mesmo tempo pessoa física e titular de atividade empresarial. Essa caracterização justifica a aplicação direta das regras de responsabilidade patrimonial, sem recorrer ao mecanismo de desconsideração criado para sociedades empresárias, onde existe separação jurídica entre a sociedade e os sócios. Para advogados e operadores do direito, essa orientação representa uma ferramenta eficiente para a recuperação de créditos, alinhada à jurisprudência do STJ, especialmente o REsp 1.899.342/SP, e aos precedentes recentes do TJRS, reforçando a segurança jurídica e a racionalização do processo executivo.

Em suma, trata-se de mais uma oportunidade de reflexão sobre os limites da personalidade jurídica e a efetividade das execuções, em especial no contexto das microempresas e empresários individuais, cuja prática cotidiana exige atenção a esses detalhes processuais que fazem toda a diferença no resultado final.

sábado, 6 de setembro de 2025

Fundamentos da Aplicação da Lei Penal

Sempre gostei de traduzir conceitos jurídicos para uma linguagem mais acessível, porque acredito que o Direito não deve ser um mistério reservado apenas para profissionais da área. No caso do Direito Penal, isso é ainda mais importante, já que estamos falando de regras que podem afetar diretamente a liberdade das pessoas. Neste texto, reuni alguns princípios básicos que parecem simples, mas são fundamentais para garantir justiça e proteger cidadãos de arbitrariedades.O Direito Penal brasileiro possui regras muito específicas sobre como e quando as leis criminais devem ser aplicadas. Estes princípios fundamentais do Direito Penal existem para proteger a liberdade individual contra o arbítrio estatal. Eles garantem que ninguém seja surpreendido por leis criadas após seus atos; que as leis penais sejam claras e precisas; que mudanças benéficas na lei alcancem a todos; que haja critérios objetivos para aplicar a lei correta a cada caso; e que prazos sejam cumpridos rigorosamente. 

Onde tudo começa? Simples: pelo princípio da legalidade "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" ­— é o alicerce do Direito Penal moderno. Este princípio se desdobra em duas garantias fundamentais, a saber, Reserva Legal e Anterioridade.

A Reserva Legal determina que apenas leis formalmente aprovadas pelo Congresso Nacional podem criar crimes e estabelecer penas. Nem decretos, nem portarias, nem outras normas administrativas têm esse poder. Além disso, as leis penais devem ser precisas e detalhadas, descrevendo exatamente qual comportamento é proibido. Essa exigência de clareza impede que juízes apliquem analogias para prejudicar o acusado. A Anterioridade exige que a lei seja anterior ao fato criminoso. É impossível criar uma lei hoje para punir algo que aconteceu ontem. Esta regra protege as pessoas contra surpresas legislativas e garante que todos saibam previamente quais condutas são proibidas.

Embora a regra geral seja que leis penais não retroagem, existe uma importante exceção: quando a lei nova beneficia o acusado, ela deve ser aplicada mesmo a fatos anteriores. Imagine que uma conduta seja descriminalizada. Neste caso, todas as pessoas que estavam sendo processadas ou já foram condenadas por essa conduta devem ser beneficiadas imediatamente. É o que chamamos de abolitio criminis. Os processos são encerrados, as execuções cessam e os efeitos penais da condenação desaparecem. Da mesma forma, se uma lei nova reduz a pena ou cria algum benefício para o réu, essa melhoria deve ser aplicada retroativamente, mesmo que a condenação já tenha transitado em julgado.

Existem, porém, leis criadas para situações excepcionais que possuem um regime próprio. São as leis temporárias e excepcionais. As primeiras são aquelas que já nascem com prazo de validade determinado. Por exemplo, uma lei que vigore apenas durante os Jogos Olímpicos. As outras — excepcionais — são criadas para enfrentar situações de anormalidade, como epidemias, guerras ou calamidades públicas. Elas vigoram enquanto durar a situação excepcional. Essas leis têm uma característica especial: continuam valendo mesmo depois que perdem a vigência, mas apenas para punir crimes cometidos enquanto estavam em vigor. Caso contrário, as pessoas poderiam simplesmente esperar o fim da lei para escapar da punição.

A Teoria da Atividade

Uma questão importante é determinar exatamente quando um crime foi cometido. Isso é fundamental para saber qual lei aplicar. O Código Penal brasileiro adota a "teoria da atividade": o crime acontece no momento da ação ou omissão, independentemente de quando o resultado ocorre. Por exemplo, se alguém dispara uma arma hoje e a vítima morre amanhã, o crime aconteceu hoje. Essa regra é crucial para casos em que há mudança de lei entre a ação e o resultado.

Às vezes, porém, um mesmo fato parece se encaixar em várias leis penais diferentes. Nesses casos, precisamos determinar qual norma realmente se aplica. Não é um conflito real, mas aparente, pois apenas uma lei será efetivamente utilizada.

Os critérios para resolver essas situações são:

Especialidade: a lei específica prevalece sobre a geral. Se existe uma lei sobre roubo de veículos e outra sobre roubo em geral, aplica-se a primeira para o roubo de carros.

Subsidiariedade: a lei mais completa absorve a menos completa. O crime mais grave engloba o menos grave quando este for apenas um meio para aquele.

Consunção: um crime mais grave "consome" os menos graves praticados para sua execução. Por exemplo, falsificar um documento apenas para aplicar um golpe específico - o estelionato absorve a falsificação.

A Questão Territorial

Para determinar onde um crime foi cometido, o Código Penal também adota uma teoria ampla: considera-se praticado tanto no local da ação quanto no local do resultado. Essa regra da "ubiquidade" é importante para crimes que começam em um lugar e terminam em outro. Essa abordagem evita discussões técnicas que poderiam levar à impunidade e garante que o crime seja julgado no local mais adequado para a coleta de provas e oitiva de testemunhas.

Contagem de Prazos

O Direito Penal tem regras próprias para contar prazos. No Código de Processo Penal (CPP), a contagem de prazos é disciplinada pelos artigos 798 e 798-A, que estipulam que os prazos correm em dias corridos e que os prazos processuais penais são suspensos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, exceto em casos de réus presos, na Lei Maria da Penha e em medidas urgentes. 

Compreender esses conceitos é essencial para qualquer operador do Direito e para cidadãos que querem entender melhor como funciona a Justiça Penal brasileira. Afinal, em um Estado Democrático de Direito, a aplicação da lei penal deve ser sempre previsível, justa e limitada pelos princípios constitucionais. 

domingo, 3 de agosto de 2025

Direito Penal: Uma Ciência Humanística

Há tempos venho refletindo sobre a posição peculiar do Direito Penal no universo jurídico. Depois de anos transitando entre diferentes ramos do direito, uma convicção se fortalece: o Direito Penal deveria ter tratamento diferenciado nos cursos jurídicos. Não por elitismo acadêmico, mas por sua própria natureza e pelas consequências irreversíveis de sua aplicação.

Por sua universalidade, o Direito Penal exige muito de quem dele se aproxima. Não se trata apenas de conhecer normas e procedimentos. É preciso ser conceitual, metódico, preciso. Cada artigo do Código Penal deve ser lido como quem lê um versículo bíblico, porque ali o VERBO ― que é a alma do tipo, seu núcleo ― dá o tom de tudo.

Esta precisão difere fundamentalmente do Direito Civil, onde a impessoalidade predomina e há maior margem para interpretações extensivas. Em Direito Penal, cada palavra importa. Nele, vai-se da objetividade cristalina do tipo à subjetividade profunda do dolo, sem contar as sutilezas da culpa. É preciso navegar por pelo menos duzentos anos de teorias do delito, cada qual mais filosófica que a outra, compreendendo as implicações antropológicas e os aportes da Criminologia.

Estudar Direito Penal é mergulhar simultaneamente na filosofia, indo de Beccaria até Jakobs, porque cada escola penal reflete uma visão de mundo sobre o homem, a sociedade e o Estado. É preciso recorrer à Psicologia, para compreender os meandros da vontade, da consciência e da motivação humana. A Sociologia, pelo crivo da Criminologia, ajuda-nos a entender o crime, o criminoso e a sociedade que o produz. E a História, é claro. Porque sem ela não se compreende o presente e as políticas criminais que ele comporta. Enfim. Direito Penal não prescinde da Antropologia, porque se trará também de decifrar os comportamentos humanos ­― demais humanos ― em suas manifestações mais complexas, às vezes heroicas, não raro brutais.

Diferentemente de outros ramos do direito, onde o erro pode significar prejuízo patrimonial ou inconveniente processual, no Direito Penal o erro pode custar a liberdade. Esta responsabilidade ética deveria permear toda a formação do penalista, desde os bancos acadêmicos até a prática forense.

Por todas essas razões, creio que todo curso de Direito deveria separar o Direito Penal, conferindo-lhe tratamento especial. Não se trata de hierarquizar saberes, mas de reconhecer especificidades. Assim como a Medicina tem suas especializações mais exigentes, o Direito deveria reconhecer que o Penal requer preparação diferenciada. Esta separação permitiria uma formação histórica, necessária para compreender a evolução das ideias penais desde o Iluminismo; e uma formação filosófica, que permitisse o estudo das teorias do delito como ferramentas de trabalho.

O custo do não aprofundamento é alto, porque daí advêm políticas criminais equivocadas, a aplicação irrefletida de tipos penais, a incompreensão das teorias do delito. E tudo isso tem sérias consequências. Quando vemos a expansão desmedida do Direito Penal para áreas antes reguladas apenas pelo direito civil, quando observamos a criminalização de condutas sem a devida reflexão sobre suas implicações, quando presenciamos a aplicação mecânica de normas sem compreensão de sua fundamentação teórica, percebemos o preço da negligência com que às vezes se trata esta ciência.

O Direito Penal não é apenas uma disciplina jurídica. É uma vocação. Vocação para quem não se intimida com a complexidade, para quem aceita o desafio de trabalhar com a precisão de um relojoeiro e a sensibilidade de um humanista.