
A
reflexão sobre este tema surgiu de uma consultoria na prática advocatícia.
Embora me sinta mais à vontade diante de problemas que envolvam Direito Civil, eventualmente
há exceções. Não faz muito tempo, lidei com um caso real que envolvia pessoas
que jamais esperavam que uma prática tão banal como a troca de mensagens em
grupos de condomínio pudesse gerar um processo criminal. O que pude constatar é
que, além de o advogado precisar lidar com a complexidade processual, ele ainda
precisa explicar e convencer o cliente de que, mesmo que ele possa provar o que
disse, o simples fato de dizer o que disse pode implicar em tipicidade penal.
Daí a ideia de criar este texto para falar especificamente do crime de
difamação previsto no artigo 139 do nosso Código Penal. No universo jurídico
dos crimes contra a honra, a difamação ocupa posição singular, distinguindo-se
da calúnia e da injúria por suas características específicas. Tipificada no
referido artigo 139, a difamação consiste em: "Difamar alguém,
imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação", estabelecendo pena de
detenção de três meses a um ano, além de multa.
O
Paradoxo da Verdade na Difamação
A
peculiaridade do crime de difamação é que a veracidade da imputação não
constitui, via de regra, excludente de tipicidade. Embora o senso comum tenda a
considerar a verdade como escudo contra acusações, no direito penal brasileiro,
não é assim que as coisas funcionam, porque fatos verdadeiros podem macular
irreparavelmente a reputação de alguém perante terceiros. Se João espalha pela
vizinhança que Maria não honrou determinada obrigação financeira, ainda que tal
informação seja verídica, ele poderá responder pelo crime de difamação.
Qual
é a razão de ser desta sistemática? É a proteção da honra objetiva, ou seja, do
conceito que a pessoa goza no meio social. Para o legislador, a divulgação de
fatos verdadeiros, porém prejudiciais à reputação, pode causar danos tão
significativos quanto a propagação de inverdades, de sorte que o que se chama
comumente de fofoca pode ser crime.
A
Exceção da Verdade: O Interesse Público em Questão
Contudo,
o ordenamento jurídico brasileiro excepciona essa regra geral pela
"exceção da verdade". Trata-se de um mecanismo que permite ao
acusado, em circunstâncias específicas, provar a veracidade de suas afirmações
como forma de defesa.
No
âmbito do crime de difamação, porém, essa exceção tem restrições, porque ela se
aplica somente quando o ofendido é funcionário público. Além disso, a ofensa deve
estar relacionada ao exercício de suas funções, tudo em função do princípio da
transparência administrativa e no direito à informação. Há interesse coletivo
em conhecer a verdade sobre seu comportamento funcional, interesse este que
sobrepuja a proteção da honra individual, quando a imputação se relacionar ao
exercício do cargo ou função.
A
Era Digital e os Novos Desafios: Grupos de WhatsApp e Redes Sociais
A
realidade contemporânea trouxe novos desafios para a aplicação dos crimes
contra a honra. Grupos de WhatsApp de condomínios, bairros e associações
profissionais tornaram-se verdadeiros campos minados jurídicos, onde a
informalidade da comunicação digital frequentemente obscurece a gravidade das
consequências legais.
O
ambiente digital cria uma perigosa ilusão de intimidade e informalidade. A
rapidez das mensagens, a ausência de formalidade e a sensação de "conversa
entre conhecidos" induzem as pessoas a expressarem opiniões e
compartilharem informações que jamais veiculariam em outros contextos. Contudo,
juridicamente, uma mensagem difamatória em grupo de WhatsApp possui a mesma
força probatória e as mesmas consequências legais de uma declaração pública.
O
Equívoco do "Mas É Verdade!"
A
experiência forense demonstra que a defesa mais comum em casos de difamação
digital é precisamente a alegação de veracidade dos fatos. "Mas eu só
disse a verdade e posso provar!" tornou-se o mantra de muitos
acusados, revelando total desconhecimento sobre a sistemática legal da
difamação. Como visto, salvo na exceção específica relativa a funcionários
públicos, a verdade não exime a responsabilidade penal.
Dinâmicas
Perigosas dos Grupos Digitais
Os
grupos de comunicação instantânea propiciam dinâmicas especialmente perigosas:
· Efeito
cascata: Uma
informação prejudicial rapidamente se espalha, amplificando exponencialmente o
dano à reputação da vítima.
·
Anonimato
relativo: A
sensação de proteção do ambiente digital encoraja manifestações mais ousadas e
potencialmente ofensivas.
· Permanência
das provas:
Diferentemente de conversas presenciais, as mensagens digitais criam rastro
probatório inequívoco, facilitando a comprovação da autoria e do conteúdo
difamatório.
· Publicidade
ampliada: O que
seria uma conversa reservada transforma-se em comunicação para dezenas ou
centenas de pessoas.
Cautelas
Necessárias
Diante
desse cenário, algumas cautelas tornam-se imperativas:
· Reflexão
antes da manifestação:
Questionar sempre se a informação a ser compartilhada é realmente necessária e
se pode prejudicar a reputação de terceiros.
· Distinção
entre fato e opinião:
Opiniões pessoais possuem maior proteção legal que a imputação de fatos
específicos.
·
Cuidado
com informações de terceiros:
Reproduzir informações difamatórias pode configurar crime, mesmo que não se
seja o autor original.
· Consciência
da publicidade:
Lembrar que grupos digitais não constituem ambiente privado para fins legais.
· Busca
por orientação jurídica:
Em situações duvidosas, consultar profissional do direito antes de veicular
informações potencialmente comprometedoras.
Reflexão
Final
A
tecnologia ampliou nossa capacidade de comunicação, mas não alterou os
fundamentos da responsabilidade jurídica. O dano à reputação causado por uma
mensagem de WhatsApp pode ser tão devastador quanto aquele provocado por uma
declaração pública tradicional. O senso comum, infelizmente, revela-se péssimo
conselheiro em questões jurídicas. A crença de que "dizer a verdade"
constitui salvaguarda absoluta tem levado muitas pessoas a enfrentarem
processos criminais que poderiam ter sido evitados com maior prudência e
conhecimento legal. Em tempos de hiperconectividade, a antiga máxima
"pense antes de falar" ganha nova dimensão: pense antes de digitar,
pense antes de enviar, pense antes de compartilhar. A reputação alheia e a
própria segurança jurídica dependem dessa reflexão.
O
crime de difamação revela a complexidade do direito penal na proteção de bens
jurídicos fundamentais. Ao estabelecer que a verdade não constitui, por si só,
excludente de tipicidade, o legislador reconheceu que a honra merece proteção
mesmo diante de fatos verídicos prejudiciais. Simultaneamente, a exceção da
verdade para funcionários públicos demonstra a sensibilidade do ordenamento
jurídico em equilibrar direitos individuais e interesses coletivos, privilegiando
a transparência e o controle social da administração pública.
E
assim, entre verdades inconvenientes e mensagens impensadas, descobrimos que o
direito penal pode estar mais perto do grupo do condomínio do que imaginávamos.
Afinal, na era digital, basta um clique mal calculado para transformar um desabafo
em denúncia, e uma fofoca em ficha criminal. O conselho? Cultive o bom senso
com o mesmo zelo com que se cuida de uma planta rara: regue com empatia, apare
com cautela e nunca o exponha demais ao sol das redes sociais. Direito e
diplomacia, quando andam juntos, evitam muitos problemas.