sexta-feira, 20 de junho de 2025

Direito & Literatura : escritas criminais

Livros antigos são fontes que nos oferecem informações muito interessantes e, por vezes, inusitadas. Penso ser este o caso do livro intitulado Les Criminels peints par eux-mêmes (1912) [1], de Raymond Hesse (1884-1967), escritor, magistrado, advogado e bibliófilo francês conhecido por suas obras sobre temas sociais, criminológicos e literários. O prefácio coube a Joseph Grasset[2]. Neste livro, Hesse nos traz nada menos que amostras de literatura produzida por criminosos. A obra é ilustrada e bem editada, detalhe que confirma o interesse que a chamada Belle Époque demonstrava pela criminologia e pela psicologia.

Dentre outros pequenos ensaios, escolhi A Reforma da Magistratura (La Réforme de la Magistrature) escrito por Émile Abadie, que se assinava como Robespierre jovem. Com apenas vinte anos, em 1879, ele assassinou um jovem entregador de Vincennes para roubá-lo e, em seguida, repetiu o feito contra uma idosa rentista de Montreuil. Esses assassinatos foram cometidos com uma ferocidade inaudita. Escreveu A Reforma na prisão, enquanto esperava seu julgamento. A condenação veio ainda em 1879. Abadie faz uma crítica arrasadora à magistratura e à polícia e propõe nada menos que uma revolução para eliminar juízes e guilhotinar corruptos, imaginando uma justiça igualitária, porém regada a sangue. Seu estilo ― sem dúvisa influenciado pela Revolução Francesa ―, mescla idealismo, violência, exibicionismo e vaidade. Embora fale de reforma, a proposta é de destruição. Sua escrita é ritmica, martelada, compondo um curioso opúsculo que revela os sentimentos do criminoso em relação aos seus julgadores.

A REFORMA DA MAGISTRATURA

 

Por Abadie, dito Robespierre jovem.

 

PREFÁCIO

 

Cidadão leitor, busquemos juntos as reformas necessárias em nossa magistratura e nossa justiça, pois não ignoras que a polícia age muito mal. Ela não julga o acusado segundo seu coração. Não se preocupa em saber se ele pode se arrepender. Ela condena, pois é preciso sempre encher as prisões. [Deve-se notar que, naquela época, a lei Bérenger[3] ainda não existia. Esta crítica não teria fundamento hoje, quando a lei de suspensão permite ao delinquente primário reparar as consequências de um primeiro erro.] Vou apresentar a ti, continua Abadie, alguns relatos comoventes que provarão o que afirmo.

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

A covardia da magistratura e os crimes da justiça.

 

Por uma simples suspeita, cidadão leitor, a mulher Polícia te prende. Essa velha prostituta, essa velha espiã, coloca sua mão repugnante sobre ti e te arrasta para a cadeia. Lá, um de seus cúmplices, vil canalha e ladrão, talvez até assassino, redige um relatório. Se resistires, eles se juntam em dez contra ti e, após te espancarem, te levam ao chefe dos traidores.

Este é um amante mais íntimo da dama Polícia.

A polícia macula nossa jovem República mártir.

Recua, mulher Polícia; recua, mulher lamacenta e pérfida, recua, víbora, ou eu te esmagarei.

Vigiemos nossa jovem República!

Robespierre jovem.

 

CAPÍTULO II

A Corte, os substitutos, o julgamento.

 

A Corte é composta por três conselheiros e um substituto, quatro víboras a serem esmagadas.

Portanto, abolição da mulher Polícia e da filha submissa Justiça.

Cidadãos, às armas, eis a batalha.

— Vamos, Abadie, disse Robespierre jovem, comanda, pois és o chefe.

— Pois bem, preparem as armas. Em posição, fogo!

— Fogo? Mas contra quem?

— Contra quem? Ora, contra a polícia e a magistratura, é claro!...

 

CAPÍTULO VII

O cadafalso permanente, e eu me deleitarei em vosso sangue.

 

— Enfim, é hoje o dia da libertação!

Povo, em 1793, tu te libertaste da escravidão; em 1871, conquistaste a República. Pois bem! Que este dia seja a data para conquistar a justiça igual e leal.

— Acabo de nomear juízes para fazer justiça. Esses juízes imortais, vou nomeá-los para ti.

O primeiro é Marat[4], o segundo é Robespierre jovem[5], o terceiro é Fouquier-Tinville[6], o quarto é Fourier[7] e um de meus amigos, Camille Desmoulins[8].

— O cadafalso está montado na Praça da Bastilha.

Só falta a hora de começar.

— Cidadão carrasco, começa! Ele tem o coração apertado, não gosta da morte.

Que importa... que as ruas de Paris se encham desse sangue venenoso, que o Sena corra vermelho como carmim. Eu os trarei um a um; quando estiveres cansado, tomarei teu lugar.

Golpeia, golpeia, cidadão carrasco; golpeia, golpeia sempre!

O sangue me sobe aos joelhos. Quero que me banhe até a cintura. Que se empilhem todas as cabeças em pirâmides e que as lanças da grade de entrada do Palácio da Justiça sejam adornadas com as cabeças da mulher Polícia e da filha submissa Justiça.

O sangue me sobe à cintura. Golpeia, golpeia sem cessar; cidadão carrasco, quero que me banhe a garganta!

Sobre essa orgulhosa guilhotina, a igualdade reina. Cidadão carrasco, belo trabalho. O povo te agradece.

Quebre a guilhotina para que não sirva mais a ninguém. Nossa vingança está cumprida e deve parar por aí. Estico-me e acordo. É um belo sonho que nunca poderá se realizar.

 

Émile Abadie, dito Robespierre jovem.

 

 

Este texto pode ser considerado como um artefato histórico, pois reflete as tensões sociais da França do século XIX.É uma escrita utópica, violenta e delirante que mistura crítica social, retórica revolucionária, ódio e desejo de vingança. Abadie, no entanto, exalta os advogado, vendo-os como verdadeiros republicanos, detalhe que revela a ambivalência de quem ataca o sistema, mas valoriza quem o defende de dentro. Segundo Grasset, Abadie tinha o espírito são, ou seja, não era louco, embora desse mostras de uma mentalidade especial, fruto da merginalização bem como do ressentimento

 
Imagem: Retrato de Abadie, p. 60.

[1] Hesse, R. (1912). Les criminels peints par eux-mêmes. Bernard Grasset.

[2] Joseph Grasset (1849-1918) foi um médico neurologista, psiquiatra e professor francês, nascido em Montpellier, onde lecionou na Faculdade de Medicina. Ele é conhecido por suas contribuições à neurologia e à psicopatologia, particularmente no estudo de doenças nervosas, histeria e responsabilidade criminal. 

 

[3] A menção à "Lei Bérenger" de uma interpolação editorial, possivelmente adicionada por Hesse. Em 1879, quando Abadie escreveu A Reforma da Magistratura, a Lei Bérenger — que inclui a Lei da Liberação Condicional de 14 de agosto de 1885 e a Lei do Sursis de 26 de março de 1891, propostas por René Bérenger — ainda não existia. Na época, o sistema penal francês, baseado no Código Penal de 1810, era rígido, com penas severas e sem foco na reabilitação, o que se alinha à crítica de Abadie de que a justiça "condena para encher prisões".

[4] Jean-Paul Marat (1743-1793) foi um jornalista e líder radical da Revolução Francesa, conhecido por incitar a violência contra "inimigos do povo". Assassinado em 1793, era idolatrado por revolucionários como Abadie ainda em 1879.

[5] Abadie se autodenomina "Robespierre jovem", em referência a Maximilien Robespierre (1758-1794), líder jacobino guilhotinado em 1794. Em 1879, essa alusão reflete seu ideal de justiça radical.

 

[6] Antoine Quentin Fouquier-Tinville (1746-1795) foi o acusador público durante o Reinado do Terror, responsável por milhares de execuções. Executado em 1795, ele simbolizava, para Abadie, a severidade revolucionária.

 

[7] Charles Fourier (1772-1837) foi um socialista utópico que defendeu comunidades igualitárias. Sua inclusão no texto, por Abadie, em 1879 sugere uma visão idealista, embora anacrônica, já que Fourier morreu antes.

 

[8] Camille Desmoulins (1760-1794) foi um jornalista e revolucionário, amigo de Robespierre, guilhotinado em 1794. Abadie o cita como "amigo", reforçando sua identificação com os jacobinos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário