Faz tempo que nosso psiquismo é administrado por uma nova economia. A tristeza é proibida e o gozo é a regra. Não há lugar para o sofrimento em nossa sociedade e, cada vez mais, a medicalização faz o seu papel. O espaço do luto se restringe, e o tempo do velório pode ser reduzido com um antidepressivo que nos traz de volta à festa. Em tal cenário, não espanta que a drogadição assuma um papel de extrema relevância.
De um lado, a lógica insiste em repetir que tudo se conserta: é preciso seguir o modelo, razão pela qual há estímulo ao uso de drogas lícitas; de outro, cresce a política repressiva às drogas ilícitas, exceto quanto ao consumo pessoal, longe do cárcere e na descriminalização do porte para consumo pessoal. Isso nos coloca diante de dois extremos: ou se está diante de um usuário doente ― nem sempre dependente ― ou um criminoso, o inimigo político e social, dois extremos que se colocam entre o Juizado Especial Criminal e o crime hediondo, numa imensa discrepância onde os critérios quantidade, local e conduta nem sempre são claros.
Vale lembrar que, diante de um sistema penal seletivo, dificilmente os atributos pessoais do sujeito não contam, de sorte que a mesma quantidade de droga encontrada com um ou com outro vai sempre colocar o indivíduo, literalmente, nas mãos de seu julgador. O critério objetivo faz do uso um fato atípico, assim como a posse em quantidade mínima. De considerar também o cenário de consumo eventual: como ecstasy na balada. Enfim, há o direito à autolesão, onde entra o princípio da alteridade (transcendentalidade do fato típico), ou seja, não se pode punir o desvio meramente individual, que não atinge bem jurídico alheio.
Neste contexto, o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659 pelo STF, que afastou a repercussão penal do porte de até 40 gramas de maconha para consumo pessoal, representa um marco jurídico e social. A decisão, embora rejeite os embargos de declaração que buscavam alterar seus parâmetros, consolida uma linha de entendimento que reconhece a necessidade de afastar a criminalização do usuário, privilegiando uma abordagem administrativa e de saúde pública. Essa postura desafia o modelo penal tradicional, que historicamente tem sido seletivo e punitivo, sobretudo contra os mais vulneráveis.
É pertinente analisar o posicionamento dos ministros, e os argumentos de que se utilizaram. Foram favoráveis à descriminalização:
Gilmar Mendes (Relator) defendeu que a criminalização viola o art. 5º, X da CF (direito à intimidade e vida privada), pois o uso pessoal de drogas não afeta terceiros. Apontou a seletividade penal: jovens negros e pobres são criminalizados com quantidades menores que brancos de classe média. Propôs critérios objetivos: até 40g de maconha ou seis plantas fêmeas para distinguir usuário de traficante.
Edson Fachin enfatizou a necessidade de diálogo interinstitucional com Legislativo e Executivo para políticas públicas antidrogas. Criticou a desproporcionalidade das sanções, especialmente para populações vulneráveis.
Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso aderiram aos critérios quantitativos de Gilmar Mendes, reforçando que a presunção de uso pessoal deve ser relativa, permitindo análise contextual.
Argumentos dos ministros contrários à descriminalização:
André Mendonça e Cristiano Zanin argumentaram que a saúde pública seria prejudicada, com aumento de suicídios e acidentes. Defenderam a competência do Legislativo para definir políticas sobre drogas, rejeitando ativismo judicial
Nunes Marques alegou risco de incentivo ao tráfico, vinculando a descriminalização ao aumento da violência
Posição intermediária: Dias Toffoli. Reconheceu a constitucionalidade do artigo 28, mas propôs requalificação como ilícito administrativo, mantendo a atuação da Justiça Criminal. Diferenciou-se ao não restringir a maconha, aplicando o entendimento a todas as drogas.
A maioria fixou que o porte de até 40g de maconha não é crime, mas sujeito a sanções administrativas (advertência, serviços comunitários). A decisão teve efeito retroativo, beneficiando processos em andamento, e determinou ao CNJ a revisão de casos de presos por porte. A divergência expôs tensões entre proteção de direitos individuais, saúde pública e papel do Judiciário em temas sensíveis. O julgado é plenamente atual e orienta a atuação do Judiciário e dos órgãos de segurança pública no Brasil em matéria de porte de maconha para uso pessoal.
Trata-se de uma decisão que não apenas redefine a política criminal sobre drogas, mas também reflete as tensões de uma sociedade que lida com o sofrimento e o gozo sob a égide de uma nova economia do psiquismo, onde o direito à autolesão e a proteção da esfera íntima ganham relevo. O desafio permanece em equilibrar a proteção dos direitos individuais com as demandas sociais por segurança, saúde e justiça, num cenário em que a medicalização e a repressão coexistem, muitas vezes contraditoriamente.
O julgamento do RE 635.659/SP continua atual e vigente. Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou o acórdão definitivo que firmou a tese de que o porte de até 40 gramas de maconha para consumo pessoal não configura infração penal, mas sim uma infração administrativa, afastando a repercussão criminal dessa conduta (Tema 506). A decisão tem efeito retroativo e determina que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promova mutirões para revisão de processos e prisões relacionadas ao porte para consumo pessoal, garantindo a aplicação da nova orientação jurisprudencial.
Além disso, o entendimento do STF permanece restrito à cannabis sativa, não abrangendo outras drogas ilícitas, e mantém a possibilidade de sanções administrativas, como advertência e participação em programas educativos, sem registro criminal para o usuário. A decisão é considerada um marco jurídico que reflete um novo paradigma na política criminal brasileira sobre drogas, mas ainda suscita debates e desafios práticos para sua implementação.
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